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Simbologia Explicada

O Periódico Opinioso do Castelo da Curva do Rio

Trazendo pensamentos, lembranças, informações, entrevistas, comentários, o passado, o presente, o futuro e a narração de casos verídicos, em sua maioria fantasiados, escritos em prosa e verso pelo Segrel Paraibano Igor Gregório

Data: Três de abril de dois mil e vinte quatro

Título: Simbologia Explicada

No livro Cantos Populares Volume I (1883), de Silvio Romero, o escritor português Teófilo Braga o introduz assim:

O Brasil, cuja poesia tanto desvairou pela imitação do subjetivismo byroniano, e cuja Literatura nascente se amesquinhou seguindo longo tempo o nosso atrasado romantismo europeu, só poderá achar o seu caráter original conhecendo e compreendendo o elemento étnico das suas tradições populares

Reedição de 2001 do livro Cantos Populares Volume I, de Silvio Romero

Posteriormente, o vate português continua listando inúmeros exemplos em que as tradições populares, de variadas nações pelo mundo, moldaram uma arte original e perpétua.

Quando comecei a construir o meu castelo literário, o Castelo da Curva do Rio, procurei buscar referências simbólicas do meu chão que adornassem, com a Beleza e a Verdade, cada obra realizada neste marco. Nos Poemas utilizo a beleza rítmica contida nas estruturas poéticas dos cantadores de violas e cordelistas. Na Prosa abracei a verdade que existe em nossa língua nordestina, tão peculiar no imenso universo lusófono. Nas Artes Plásticas me valho da xilogravura como molde essencial das minhas gravuras, mas também das esculturas dos mestres populares e seus elementos particulares. E na Iconografia procuro incessantemente os signos e emblemas que tão fortemente protegem e caracterizam o nosso povo.

Conforme comentado na edição anterior deste Periódico, a leitura do Romance da Pedra do Reino, do mestre Ariano Suassuna, causou grandes impactos na minha formação de escritor. Um destes impactos foi a presença dos Ferros de Marcar gado utilizados como parte da Heráldica Sertaneja citada por Quaderna para representar e identificar as fazendas e famílias sertanejas ligadas a Civilização do Couro.

Última edição d‘O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta’, publicada em 2023, pela Editora Nova Fronteira. Nela, nas duas extremidades superiores, podemos constatar o Ferro da família Suassuna.

Ilustração de Ariano Suassuna para seu livro, A Pedra do Reino, publicado originalmente em 1971: Bandeira exibindo da fazenda “Onça Malhada”, ladeada pelos Ferros de Marcar das famílias fictícias “Garcia-Barretto” e “Ferreira-Quaderna”.

Busquemos a História: Na segunda metade do século XIX foi inventada, nos Estados Unidos, a cerca de arame farpado. Esse fato causou uma revolução na criação bovina. O gado que vivia solto, pastando pelas campinas, ribeiras e serras, agora podia ser confinado em um determinado local. Essa invenção facilitou a contagem, o cuidado e melhorou qualidade das criações.

Dito isso, no Nordeste do Brasil tivemos dois tipos de colonização: A Canavieira, nos litorais e brejos, e a Tangerina, majoritariamente nos sertões. Essa colonização tangerina desbravou em todo século XVIII nossos rincões buscando se assentar e a partir daí criar a famigerada Civilização do Couro. Os pontos de paragem do gado viraram grandes fazendas. Os caminhos abertos pela passagem do gado conectaram os arraiais que iam se formando. Arraiais se tornaram Vilas que posteriormente moldaram-se em povoados e os povoados que obtinham sucesso na criação e no comércio do gado foram alçados a cidades. E por fim, na toada do aboio, todo sertão nordestino foi colonizado.

Acima alguns dos tantos caminhos da colonização do sertão paraibano.

Nessa era, entre os anos de 1500 e 1930, o gado pastava livre, como foi dito, pelos campos, vales e montanhas, sem se preocupar com fronteiras ou cabrestos. E como saber então quem era o seu dono? A solução é importada dos milênios, uma vez que desde a antiguidade (pesquisadores apontam desde 2000 A.C) já se praticava um costume: Marcar a ferro e fogo o couro da rês para assim identificar o seu proprietário, sua fazenda e sua ribeira.

Gravura egípcia datada de mais de quatro mil anos, demonstra como se fazia a ferragem do gado naqueles tempos.

Em minhas pesquisas encontrei alguns mosaicos romanos datados dos primeiros séculos depois do Cristo. Ambos são da região da Tunísia onde há uma vasta coleção de mosaicos, especialmente no Bardo Museum. Um ponto que vale ressaltar é que não encontrei representações de gado marcado e sim de cavalos. Abaixo dois exemplos que podemos considerar, todavia friso que precisamos de uma pesquisa mais aprofundada a respeito para afirmar que são representações de animais ferrados, pois há outras imagens de cavalos sem as marcações.

Detalhe do Mosaico dos Cavalos (século III dC), Casa do Aviário, parque das vilas romanas, Sítio Arqueológico de Cartago (Lista do Patrimônio Mundial da Unesco, 1979), Tunísia.

Um mosaico romano de dois famosos cavalos de corrida chamados Diomedes e Aicides. No detalhe podemos ver nas ancas dos animais marcas que podem ser de Ferros. Imagem do Museu Bardo, Tunísia.

O registro nacional mais antigo que consegui encontrar sobre os Ferros de Marcar vem do trabalho de dissertação do professor Rafael Klumb: “A tradição das marcas de gado nos Campos Neutrais, RS/Brasil” (https://repositorio.ufpel.edu.br/handle/prefix/5378?show=full). O caríssimo professor realizou um levantamento fantástico sobre os Ferros da região platina, abrangendo Argentina, Brasil e Uruguai. Abaixo alguns registros do referido trabalho:

Ata do Cabildo de Santa Fé, em 12 de novembro de 1576, com as primeiras marcas registradas na região do Rio da Prata. Fonte: Archivo Histórico de la Provincia de Santa Fe, 2012 Registro de Rafael Klumb.

Como poderemos constatar adiante, esse “Cadastramento dos Ferros” é oriundo da colonização espanhola, conforme cita o professor Klumb referenciando os pesquisados Virgílio Maia e Oswaldo Lamartine: “O primeiro registro relacionado à interferência do estado em normatizar a identificação de animais através das marcas, na tentativa de transformar um habitual costume em lei, data de 1499, na Espanha. Por influência do Consejo de la Mesta, uma cooperativa restrita de fazendeiros, cujos rebanhos eram criados à solta por todo o país, o governo criou uma lei que obrigava todos os proprietários a ferrar seus animais”. Esta lei vem importada para a América e há uma sistematização maior no sul do país acerca dos registros dos Ferros de Marcar. Desse modo, podemos constatar duas formas de convívio com essa cultura: A primeira, apresentada no texto do Professor Klumb, e a segunda, a Nordestina que, como veremos mais a frente, abraça uma tradição mais orgânica, passada de pai para filho, deixando de lado a institucionalização.

Página do Catálogo Oficial de Marcas y señales de la província de Santa Fé. Registro de Rafael Klumb.

Quadro com marcas antigas e sistemas de marcas uruguaios. À esquerda, marcas históricas uruguaias e, à direita, o exemplo de alguns sistemas utilizados. Registro de Rafael Klumb.

Página do Livro de Registro de Marcas contendo belíssimos Ferros. Fonte: ICMS/Secretaria da Fazenda de Santa Vitória do Palmar. Registro de Rafael Klumb.

Vale salientar que também podemos encontrar a cultura dos Ferros em tradições indígenas, conforme o pesquisador Virgílio Maia cita em seu livro Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas (2004): “No Brasil, o uso dos ferros se disseminou, de forma que, por influência do colonizador, até mesmo algumas etnias indígenas passaram a usá-los, como é o caso dos Kadiwéu. Os antropólogos Guido Boggiani e Darcy Ribeiro estudaram essa etnia e destacaram a estética de suas marcas, bem como o seu uso em animais e objetos, como uma maneira de reconhecer a propriedade individual”.

Ferros criados e usados pelos índios Kadiwéu registradas por Guido Boggiani apresentadas no livro de Virgílio Maia.

Junta de bois no transporte de mantimentos, pintura de Jean-Baptiste Debret datado de 1835. No detalhe da imagem ver-se na anca da rês a marca do ferro.

Ferros de fazendas de criação de gado no Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Registro datado de 1890. Texto completo sobre estes Ferros no link: https://genealogiaserranasc.blogspot.com/2016/12/costumes-tradicoes-e-dificuldades-do.html

O costume se espalha. E quando os sertão nordestino começa a ser colonizado, a coroa portuguesa incentiva a cultura dos Ferros. Mas que marcas criar? Letras? Iniciais do nome do proprietário do gado? Parece lógico. Mas naquelas eras a população colonizadora era majoritariamente analfabeta! O sentido se perde e na imensidão sertaneja e nas solitárias noites de lua criam-se símbolos que vão além da compreensão. Como vimos, os símbolos podem estar ligados a uma padronização europeia. Todavia, alguns dizem que os Ferros sertanejos têm suas formas inspiradas nos símbolos do Zodíaco, dos Planetas e da Alquimia. Outros dizem são inspirados no contato com as gravuras rupestres pintadas nas pedras e lajedos da Caatinga pelos povos indígenas.  Já outros afirmam que são as formas mais fáceis para que os rudes ferreiros pudessem criar, num local onde a matéria e a técnica eram escassas. Não há certezas nas areias do tempo, só há a poeira que nubla a razão fazendo-a tatear agarrada à poesia. Desse modo, aqui e ali nos sertões nordestinos começam a nascer formas que intrigam o pensamento, mas que representavam a terra, o fazendeiro e sua família, e a sua ribeira de origem.

Signo zodiacal e astrológico de Júpiter e ferro que representa uma variante desse signo. Imagem retirada do livro Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja (1974), de Ariano Suassuna.

O tempo sopra no sertão e abrasa a proliferação de fazendas que naturalmente são criadas nos cursos das águas dos rios. Cada fazenda cria seu Ferro de Marcar, mas como foi dito o gado vivia “livre”, pastando e se reproduzindo quase que independentemente. Reses de fazendas diferentes se misturavam, adentravam em outras propriedades e varavam outras ribeiras. O que é uma ribeira? Todas as localidades que margeiam os rios que serviam suporte à colonização. Inventa-se as Festas de Apartação, aonde uma vez no ano os proprietários das fazendas se reuniam em uma determinada localidade, acompanhados de seus vaqueiros, e dali ordenavam a pega das reses que soltas vagueavam pelo sertão.

Vaqueiros capturando uma rês

Recolhidas todas as reses, novas e velhas, se fazia a partilha e marcava-se cada rês com o ferro de seu proprietário. Na anca direita o ferro com a marca da família, na anca esquerda marcava-se com o ferro da ribeira, este último, elo entre o indivíduo e a comunidade. Entre bebedeiras, jogos e música, a festa varava os dias. Ao seu final, todas a reses estavam marcadas e livres novamente para pastar pelo sertão.

Momento da ferra no couro do gado. Registro de Daniella Lira, em seu trabalho “Sob os Signos das Boiadas: As Marcas de Ferrar Gado que Povoam o Sertão Paraibano”

As famílias crescem numerosas e com ela a necessidade de um filho ter a sua individualidade. Porém, a obediência à família e a austera educação sertaneja, arraigada no isolamento territorial e no catolicismo, impedem estes filhos de ter a independência total. “Sempre nas barras das saias”, como dizia minha Avó, estes filhos permanecem ligados à família, porém se casam, criam suas fazendas e suas próprias criações de gado, mas não criam, independentemente, os seus próprios ferros. Eles aproveitam os caixões (termo utilizado para designar o Ferro base de uma família) e a partir dele elaboram, com pequenas diferenças, o seu próprio ferro.

Ferros em brasa

Despretensiosamente, a Civilização do Couro cria a Heráldica Sertaneja, termo utilizado pela primeira vez pelo pesquisador Gustavo Barro no livro Terra de Sol (1956), e adotado posteriormente por todos aqueles que se debruçaram sobre o tema, para identificar essa passagem dos ferros de pais para filhos. E por que este batismo de Heráldica Sertaneja?

A Heráldica é a arte ou ciência que estuda os emblemas blasônicos, como a descrição e a criação de brasões. E Sertaneja, logicamente, porque se desenvolveu nos sertões nordestinos. Sei que estamos falando aqui dos sertões como as localidades mais afastadas do litoral de cada estado, geralmente associadas ao bioma da Caatinga, mas vale salientar que o termo Sertão era utilizado, no início da colonização, para descrever qualquer localidade que não seja o litoral. Friso isso agora, para depois entendermos a conexão da minha obra com os ferros de marcar.

Brasões medievais europeus

Foi identificado pelos pesquisadores que, assim como nas famílias reais europeias, onde os brasões que representavam suas casas eram passados de pais para filhos e que estes por sua vez acrescentavam um traço seu quando se tornavam eles os chefes das famílias, os sertanejos também passavam os seus Ferros de geração para geração. Abaixo exemplos:

Em destaque a marca de Manuel Emiliano, da família Medeiros e, em seguida, as marcas individuais de seus filhos.

Marcas da família Nóbrega, da região do Seridó paraibano. Imagens retiradas do livro Tradições Ruralistas: marcas de gado, experiências, clima e outras histórias de Aderaldo de Medeiros Ferreira, Editora Universitária/UFPB (1999).

Duzentos anos se passam até que por volta do começo do século XX a cerca adentra pesadamente no Nordeste brasileiro. Esta “invasão” modifica gradativamente o costume de marcar o gado. O primeiro impacto é o desaparecimento da marca da ribeira, uma vez que o gado estava limitado à terra do proprietário, não havia mais necessidade de se identificar a região no couro do animal. Em um segundo momento acaba-se também as Festas de Apartação, pois cada proprietário passa a saber exatamente que o gado confinado em seus limites é seu. Todavia a marca da família continua, pois ela não é somente um símbolo que identifica o gado que foi marcado, mas também um símbolo de identificação da família perante a sociedade.

Ferro do proprietário no frontão da casa, Fazenda Acauã, sertão da Paraíba. Registro de Daniella Lira, em seu trabalho “Sob os Signos das Boiadas: As Marcas de Ferrar Gado que Povoam o Sertão Paraibano”.

Sobrevivendo até os dias atuais, alheias a modernização trazida pelas etiquetas que são colocadas nas orelhas da rês e que contém chips eletrônicos que a identifica e a georreferencia, os Ferros de Marcar podem ser tornar um importante, porém oculto e quase esquecido, símbolo da cultura sertaneja. Seu potencial artístico pode ser a espoleta para a elaboração de expressões artísticas que se identifiquem com tais elementos e que dessa forma ajudem a manter viva essa memória. Ariano Suassuna foi um grande propagador desta teoria. O mestre se utilizou dos Ferros para elaborar um alfabeto armorial e para ornamentar toda a sua obra.

Alfabeto Armorial criado por Ariano Suassuna a partir dos Ferros de marcar do Cariri paraibano.

Fonte Tipográfica Armorial ou Tipografia Armorial elaborada a partir do alfabeto desenvolvido por Ariano Suassuna.

Fonte Tipográfica de Virgílio Maia, idealizada a partir dos Ferros do estado do Ceará.

Ferros do Cariri: Uma Heráldica Sertaneja de Ariano Suassuna, 1974.

Ferro de Ribeiras do Rio Grande do Norte de Oswaldo Lamartine, 1984.

Campos Realengos: Formação da Fronteira Sudoeste do Rio Grande do Sul, Volumes 1-2 de Raul Pont, 1984. Livro bastante citado pelo professor Rafael Klumb em seu trabalho de dissertação e de onde podemos constatar que ele retirou grande parte das informações históricas sobre os Ferros do Sul.

Cartilha: Martelo-gabinete e Ferrografia de Virgílio Maia, 2002.

Rudes Brasões: Ferro e Fogo das Marcas Avoengas, de Virgílio Maia, 2004.

Alguns críticos ao uso estético dos Ferros de Marcar irão apontar todo sofrimento causado pelo ato de ferrar, tanto animais quando pessoas escravizadas no decorrer da colonização. Em defesa, se é que se precise fazer isso numa escolha artística, eu trago aqui toda estética do Cangaço, tão bem apontada e esmiuçada pelo grande pesquisador Frederico Pernambucano de Melo. Olhe, meu elevadíssimo Leitor, goste ou não, além de todas as justificativas sociais, a de se reconhecer que o Cangaceiro era um ladrão, um assassino e muitas vezes um estuprador. Lampião e seus subgrupos espalharam pelos Nordestinos, que não entravam em acordo com ele, uma violência extrema. Ao mesmo tempo, com essa rebeldia, valentia e realizando feitos guerreiros e impossíveis, a figura do Cangaceiro ganhou a simpatia do povo, que, por sua vez, tratou logo de mitificar o Guerreiro dos Carrascais Sertanejos. Atualmente podemos ver crianças realizando apresentações musicais fantasiadas de cangaceiros; em toda quadrilha junina há o Lampião e a Maria Bonita; recentemente Juliette conquistou o Brasil vestindo na televisão, em rede nacional, o chapéu, tão característico, do Cangaceiro; por várias feiras, mercados, lojas e bodegas nordestinas se encontram itens de couro (sandálias, chapéus, bolsas etc.) contendo as características únicas da Arte do Cangaço. O Cangaceiro, assim como o cavaleiro medieval na Europa ou o Samurai no Japão, criou uma identidade e uma unidade estética no Nordeste. Sendo assim, eu me sinto totalmente desprovido de alguma culpa moral em relação aos Ferros de Marcar, pois como tudo neste nosso Nordeste, ou neste mundo, eles também possuem a sua face de bem e mal, de belo e feio, de divino e de demoníaco.

Pois bem, de minha parte, iluminado pela leitura do Romance da Pedra do Reino de Ariano Suassuna, e abraçado ao conceito citado por Teófilo Braga, trago para o meu Castelo da Curva do Rio, o meu castelo literário, os Ferros de Marcar. Por três motivos óbvios: O primeiro é que a minha família, até onde pude rastrear, está assentada na região que hoje compreende os municípios de Solânea e Casserengue, antes localidades que respondiam a Vila de Bananeiras, há cerca de 250 anos. Em sua grande maioria eram pequenos produtores rurais que vivem da agricultura de subsistência. Porém, alguns se aventuraram na cultura Tangerina e estes, por sua vez, desenvolveram seus Ferros de Marcar. Como frisei aqui anteriormente, os Sertões no início da colonização eram quaisquer terras afastadas do litoral. A localidade onde minha família se assentou e proliferou está há 150 km capital do estado da Paraíba, que se localiza às margens do Atlântico. Sendo assim, podemos constatar que a tradição dos Ferros não era restrita aos Sertões profundos (Alto Sertão e Cariri), mas sim onde quer que tivesse uma rês vagando nesta nossa Paraíba. Abaixo alguns registros dos ferros do meu tio-bisavô Orestes:

Ferro do meu tio-bisavô Orestes.

Ferros dos seus filhos, onde podemos constatar que a Heráldica Sertaneja não foi seguida. Pois os filhos, esquecendo o caixão do pai, criaram ferros que representavam as iniciais dos seus nomes.

Ferro do meu primo legítimo Adalto Moreira, que pela pouca intimidade com as letras, criou o ferro com as suas iniciais, mas ao invés de utilizar a letra “A”, utilizou-se da letra “O” que representava a forma que ele mesmo pronunciava o seu nome “Odalto”.

O segundo motivo é pela beleza mística e natural que está intrínseca nas formas dos Ferros de Marcar. Seu potencial estético é claro, como um dia de sol, para todo artista que possui um olhar voltado para as riquezas culturais de seu chão. E reafirmo: Eu pretendo não somente olhar para os Ferros de Marcar, mas para qualquer outra manifestação popular que exale o belo e que seja compatível com a minha produção. Como eu não possuo, e nem pretendo ter, gado para marcar, eu marco todas as obras contidas no meu castelo literário, O Castelo da Curva do Rio.

A partir das formas básicas (imagem abaixo) para a construção dos Ferros, elaborada por Suassuna, eu tomei as minhas liberdades de escritor e poeta e criei o meu Ferro, a marca da minha família.

E indo além, provocado por Virgílio Maia, criei o Ferro da minha ribeira, a Ribeira do Rio Paraíba. Pois, como foi relatado na edição anterior deste Periódico, eu vivi a maior parte da minha vida nas beiras desse magnífico rio. Como os Ferros da minha família foram descontinuados, eu me utilizei das formas do “i fechado” e de duas “meia-lua” para recriar o Ferro da minha família. Estes símbolos representam, respectivamente, o escritor, ao centro cortado por seus amores, a família, com uma “meia-lua” voltada para baixo, e a poesia, com uma “meia-lua” voltada para cima. Já no ferro da Ribeira…

Ferro da Família Gregório Costa de Souza, e abaixo o Ferro da Ribeira do Rio Paraíba. Ambos criados pelo Segrel Paraibano Igor Gregório.

Conforme relatado por Virgílio Maia, nestes Ferros das Ribeiras eram consideradas as letras iniciais dos nomes dos Rios ou das Padroeiros da localidade. Como eu considero que a padroeira da Paraíba é Nossa Senhora da Penha, tendo em vista que é a santa que o povo mais se identifica devotamente, e tenho minhas raízes no Rio Paraíba, pretendendo, como dito na coluna anterior, construir o meu castelo real um dia em suas margens, resolvi fazer uma junção: Escolhi a letra “N” para representar Nossa Senhora e a letra “P” tanto para representar o Rio Paraíba, como também para aludir ao “Penha”, da santa. Já a meia “meia-lua” voltada para baixo na perna do “N” significa a raiz que liga ambos ao nosso chão.

Na bandeira do meu castelo também trago a imagem de Nossa Senhora Penha, neste ponto deixo de lado um pouco as regras da Heráldica, que não indicam imagens de santos e sim símbolos que os representem, para trazer uma gravura clara da santa. No escudo coloquei uma coroa para revelar sua grandeza e sete raios de luz saindo do seu corpo. O número sete possui inúmeras representatividades, mas aqui o trago como forma de iluminar as sete torres do meu castelo (assunto que detalharei, na próxima coluna).

Escudo do Castelo da Curva do Rio, criado pelo Segrel Paraibano Igor Gregório.

O terceiro e último motivo de me utilizar dos Ferros de Marcar, além da hereditariedade e da estética citados, é o dever da continuidade. Tenho plena consciência do meu papel quanto paraibano, nordestino e brasileiro. Não posso de forma alguma cegar para a arte que é feita em minha região. Com um olhar carinhoso e dedicado, eu me imponho (de forma extremamente prazerosa) a estudar e criar a partir dos elementos desenvolvidos pelo meu povo no decorrer de vários séculos. Sinto um orgulho danado de poder levar adiante estas marcas, insígnias, símbolos e tradições culturais que tanto caracterizam e enriquecem não somente a cultura brasileira e sim a arte humana.

Meu primeiro livro de poesias, Alma-de-Gato no Voo da Alvorada, 2023.

Detalhes do livro de poesias, Alma-de-Gato no Voo da Alvorada, 2023.

Detalhes do livro de poesias Alma-de-Gato no Voo da Alvorada, 2023.

Detalhes dos meus folhetos de cordel lançados em 2023.

Detalhes dos meus folhetos de cordel lançados em 2023.

Vim dor mar pelos ventos do futuro,
em barcaças moldadas no passado,
oriundo do lado orientado
onde o Mouro gritou o seu murmuro.
Vim de lá com o corpo em desconjuro
para aqui aportar o meu presente.
O Sertão adentei e pela mente
me criei no aboio do vaqueiro.
Sou galope, poeira e o terreiro
onde o mito queimou incandescente.

Profundezas imensas retumbei
pois meu sangue é brasa que desenha.
Ardem traços no couro e na lenha
que traduzem o que sempre eu serei.
Sou o Ferro que diz: “Eu viverei,
pelas proles sedentas de legado”.
Sou o Ferro que versa todo gado
e o berro que quebra as porteiras.
Sou emblema que vara as ribeiras
repousando no gênio endiabrado!

Faço parte de cânticos ocultos:
Um mistral que procela um Lunário!
Sou perpétuo levando o lampadário
dum ofício que emana muitos vultos.
Somos todos parcelas destes cultos
proclamados por todo Nordestino.
Somos todos promessas do Divino
que o Homem executa com destreza.
Somos nós a Verdade e a Beleza
que ecoa no sorriso de um menino.

Não há nada que poça me deter,
sou o brado poético de um povo.
Sou o Símbolo forte e tão novo
que o Poeta traduz em seu dizer.
Para sempre eu hei de amanhecer
pelas plagas ardentes desta terra.
Sou as marcas perenes duma guerra
que domou, que matou e que passou.
Mas não passo, pois a arte me salvou
e é nela que pulsa a minha ferra
!