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Quem herdou a urna de prata?

A reação rápida normalmente não é sábia, mas demonstra vividez de espírito. A reação mais ponderada, a seu turno, costuma ser mais lenta, mas exige a perda de um pedaço de si, um brilho; uma urna de prata, bela porém opaca.

Desde que tomei conhecimento de que o espólio de um talentoso dramaturgo paraibano, que brilhou em sua juventude mais do que qualquer nome da cena atual, caía no esquecimento por inércia de seus próprios herdeiros, passei a refletir muito sobre legado. Peças de figurino, textos inéditos, escritos pessoais formando um chão maciço de contexturas sem significado algum…

Isso me leva a uma bifurcação de pensamentos.

Numa primeira trilha, o terror de eu mesmo não deixar herdeiros suficientemente comprometidos com o meu legado. Não sou um ególatra, longe disso, mas não sei se suportaria ver meus personagens mais emblemáticos — Isaac, Olavo, Beta, Manoel e o Incendiário — perdidos num oceano de revoluções existenciais vazias de sentido.

Numa segunda trilha, eu penso no meu pai.

Meu pai foi um homem poderoso, um dos homens notórios de seu tempo e, sem dúvida, ainda o homem mais poderoso de sua cidade. Ele mesmo, muito zeloso com sua própria estrada, parecia dia após dia polir a prata obscura de seu legado. “É assim que é, é assim que é”, e dia após dia, naquele trabalho incessante, morreu, e não deixou ninguém para polir em seu lugar.

Uma ação judicial declaratória de algo que já estava declarado, um dedilhar de feridas que não precisavam de intervenção. Logo se apressaram a parasitar sua urna funesta. “Em nome do falecido” votem em fulano — inimigo declarado do falecido? Sim, mas ninguém precisa saber. “Em nome do falecido” votem em seu sobrinho — envolvido em escândalos? Sim. Parceiro político de um assassino? Sim. Mas ninguém precisa saber.

Soube que o inimigo declarado não ganhou, e o sobrinho não teve votos sequer para conselheiro tutelar. É uma tragédia? Sim… Não sobre os parasitas, naturalmente, mas sobre quem morre e não deixa ninguém para polir em seu lugar.

Antes que me perguntem por que não herdei o polimento, eu, seu filho, respondo: meu pai transformou seu legado em totem — e, como todo totem, pedia não afeto, mas reverência. Minha história é outra, e não preciso parasitar seu nome para ter projeção.

Minha prece, entretanto, é que não me vejam polindo minha própria urna fúnebre, deslumbrado com minha própria imagem refletida. Que a vida — não seu reflexo — seja sempre o objeto de meu fascínio!

Pedro Pereira de Sousa Neto
Pedro Pereira de Sousa Neto
Advogado, escritor e gestor cultural. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública e proprietário do Escritório PP Advocacia. Vice-Presidente da Cia Multicultural Art'Spaço, atua na promoção cultural e já foi agente do Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Distrito Federal (FAC-DF). Em 2024, lançou Dois Sonhos: Primeiro Sonho (Viseu), romance de estreia desenvolvido com apoio do FAC-DF, no qual foi classificado em primeiro lugar na modalidade de desenvolvimento de obra literária, destacando-se pelo rigor criativo e pela profundidade narrativa.