Coração trapezista
Por Annecy Venâncio
Era dezembro de 1986, as luzes natalinas invadiam a cidade, o picadeiro ficava cada vez mais colorido e mágico. Eu estava lá, flutuante, olhada, aplaudida. Meus olhos sorriam tentando ver a plateia. Enquanto voava pelo trapézio, naquela noite de dezembro, os flashes pareciam sussurrar segredos do passado.
Diziam que eu era uma deslocadora incomum. Minha graça e habilidade chamavam a atenção de todos. No entanto, por trás do brilho dos holofotes, havia uma história que poucos conheciam.
Ao me olhar no picadeiro, como estrela, coisa que depois me confessara, ele apaixonou-se pela atriz circense, pela mulher que seduzia ao sorrir e ao remexer o corpo. Capturava-me em sua lente, devorava-me. Foram dias similares: flores, mimos, bilhetes, uma conquista barata, que me levou aos braços dele.
Enquanto eu deslumbrava o público com minha graça e destreza no picadeiro, nos bastidores, eu era cativada pelo olhar apaixonado daquele que me via como a personificação do encantamento.
Oto era um homem enigmático, com um jeito sedutor e uma aura de mistério que intrigava a todos, principalmente a mim, sua Lilly. A forma como ele me observava, como se cada aceno meu fosse uma declaração de amor silenciosa, me envolvia como um enredo abrasador de cinema mexicano.
Entre os suspiros dos espectadores e os aplausos calorosos, vi-me rendida aos encantos daquele homem que me queria além da maquiagem e das luzes do circo. Os bilhetes românticos deixados em camarins, as flores delicadamente entregues após cada espetáculo, e os olhares cúmplices nos corredores escuros do circo, criaram um vínculo especial entre nós.
Dali em diante, senti que podia me equilibrar entre a emoção do espetáculo e a paixão ardente que queimava o meu coração. Subi o degrau…caí no abismo.
-“Lilly, nunca mais romance!”-uma voz repetia em minha mente e ecoava em meu peito, enquanto eu me despedia de mim. Nunca mais flores, nunca mais bilhetes, nunca mais picadeiro, nunca mais encantamento.
A vida virou um palco onde muitas vezes representávamos papéis diferentes. No início, fui a estrela principal, o centro das atenções, a musa inspiradora do meu amado. Mas com o tempo, os holofotes se apagaram e a rotina tomou conta do espetáculo.
A paixão avassaladora deu lugar à calmaria do cotidiano, a frieza na barriga se transformou em conforto conhecido. O desejo ardente de possuir o outro todos os dias cedeu espaço à cumplicidade silenciosa, à presença constante que se tornou quase invisível.
No palco do casamento, não me enxergava mais como deslocadora, nem tinha a habilidade do equilíbrio. A transição da paixão avassaladora para a calmaria do cotidiano me fez questionar quem sou e qual é o meu lugar nessa nova dinâmica.
A sensação de deslocamento, de não me reconhecer mais na persona que habitava outrora, foi desconcertante. A habilidade do equilíbrio, tão necessária para manter a harmonia na relação, escapou por entre os dedos, deixando um vazio incômodo.
Tudo ao meu redor pareceu desvanecer, como se as cores perdessem o brilho e os contornos se tornassem difusos. A melancolia virou cobertor. Desci o degrau.
Olhei para dentro de mim, encontrei a essência que permanecia inalterada apesar das mudanças externas. Reconectei-me aos meus sonhos, meus desejos, minhas aspirações mais íntimas. Permiti-me ser vulnerável, compartilhar minhas angústias e esperanças.
Aquele palco não era meu, recuei. Foi preciso coragem para enfrentar os momentos de transição e entender que eu sou a única protagonista capaz de escrever novos capítulos e criar novas narrativas para a minha vida. Estou de volta! As luzes brilham, os aplausos ecoam, e os flashes continuam, mas agora sou eu quem dirijo o espetáculo.
Meia noite, casa vazia, apenas um homem de olhos verdes sentado no bar. Sorri. Ofereceu-me um vinho, aceitei, depois tirou uma flor do bolso e disse que eu era puro feitiço. Balancei a cabeça com um sorriso de incredulidade e retruquei: – que comece a bruxaria.
Meu corpo-vida era atriz e autora, um êxtase sob o corpo capturado, deslizando cifras de paixão. Entre um gemido e outro, sussurro: – Chico, nunca mais romance.