InícioColunaContextura: lembranças atadas na tessitura fina do tempo

Contextura: lembranças atadas na tessitura fina do tempo

(Até há alguns anos, costumava exortar que se temesse a poesia como a própria loucura… Não exorto mais; pois comecei a escrever poemas, e enlouqueci!)

Meus primeiros lampejos poéticos costumam não atender a nenhum método: vêm, como os melhores insights, da casualidade! Certa noite, arrumando um quarto daqui de casa, surgiu esse baú repleto de lembranças.

Eram documentos da minha mãe, holerites, boletos. Algumas peças muito bonitas de um enxoval todo feito em linho. Panfletos, pastas de trabalho, fantasias de formatura. Quanto mais camadas eu destrinçava, tanto mais memórias vinham surgindo — não eram memórias minhas, mas eu me via nelas, naturalmente.

Num dado momento, já não havia camadas para adentrar: o fundo daquele baú há muito tempo se convertera num pesado tapete de papéis, tecidos, plásticos etc., deteriorados, colados uns nos outros pelo tempo e pela umidade.

Foi ao reconhecer meu limite — pois não sou arquivista, e só conheço a superfície das técnicas de restauração documental — que eu percebi a semelhança daquele baú com nossa mente, daquelas lembranças com as memórias que vamos guardando ao longo do tempo: as memórias, corroídas pelo tempo e pela fantasia, atadas entre si no tecido narrativo que guardamos para nós mesmos.

Como a mente, o baú é um lugar onde o tempo não é linear: documentos de uma época se sobrepõem a retalhos de outra; fantasias de dias luminosos dividem espaço com as marcas de um período opaco; tudo numa miscelânea que tentamos em vão desvendar como se portasse uma lógica imanente.

(Nada tem um sentido imanente; quando tem, é porque lhe foi dado, de uma forma ou de outra.)

O esquecimento é uma bênção, mas ele não acontece sem que guardemos um retalho daquele enxoval, um holerite daquele trabalho mensal; sem que, por fim, cunhemos esse chão maciço, impenetrável, composto de memórias dissolvidas e incontestes. É nesse chão de lembranças que caminhamos. Nossos apegos nos sustentam, mesmo que nunca os desvendemos por completo.

Contextura é o nome deste haikai; e, para mim, ele fala dos nossos apegos.

CONTEXTURA

No interior do quarto, existe
Um baú que não tem mais fundo

São memórias formando um tapete

Pedro Pereira de Sousa Neto
Pedro Pereira de Sousa Neto
Advogado, escritor e gestor cultural. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é especialista em Direito Administrativo e Gestão Pública e proprietário do Escritório PP Advocacia. Vice-Presidente da Cia Multicultural Art'Spaço, atua na promoção cultural e já foi agente do Fundo de Apoio à Cultura do Governo do Distrito Federal (FAC-DF). Em 2024, lançou Dois Sonhos: Primeiro Sonho (Viseu), romance de estreia desenvolvido com apoio do FAC-DF, no qual foi classificado em primeiro lugar na modalidade de desenvolvimento de obra literária, destacando-se pelo rigor criativo e pela profundidade narrativa.