Quando comecei a escrever o meu primeiro livro não fazia ideia aonde suas páginas iriam me levar. Logicamente, eu tinha uma parca e previsível noção, pois todo livro de poemas é sempre uma coletânea de sentimentos. Mas qual formato seguir? Como compor algo novo e interessante? Algo que se destacasse no vasto campo editorial? Bom, como sempre, me vali do universo da arte popular brasileira.
Os poemas em sua maioria se ancoram em formas poéticas utilizadas pelos Cantadores de Viola. Formas estas que também, por influência dos cantadores, são utilizadas por Poetas de Bancada em milhares de folhetos, contento narrativas e pelejas em versos, publicados por todo nosso Nordeste. Por exemplo: Sextilhas, Septilhas, Décimas e Martelos. Toda essa variedade estilística desafia o “Ser Poeta” por sua complexidade e elegância. Assim, logo que adquiri esse conhecimento e tomei ciência da importância que minha pequena contribuição traria para esta secular tradição, comecei a tentar moldar os meus poemas à realidade normativa das regras contidas nestas formas poéticas: A Métrica, a Rima e a Oração. Confesso que foi, e é, um grande desafio. Igualmente, confesso os meus erros ao realizar esta empreitada. Enfim, quem não anda não tropeça, não é mesmo?
Pois, pronto!
Definida a voz poética o que me restava era organizar estas poesias em um senso estético coerente com as formas escolhidas. O mais lógico e o caminho que foi escolhido foi o do Folheto. Este pequeno livreto popular, além de sua frutífera poesia narrativa, imprime em suas capas a arte milenar da Xilogravura.
A Xilogravura é a técnica onde o artesão grava na madeira a imagem que pretende reproduzir, utilizando-a como matriz e possibilitando a reprodução de diversas imagens idênticas sobre papel.
Originaria dos primeiros séculos Depois do Cristo, não há certeza sobre a região em que a Xilogravura surgiu. No século VI já se pode encontrar no Egito tecidos estampados com figuras elaboradas em blocos de madeira. Pouco tempo depois, na China a Xilogravura é amplamente usada em selos, papel moeda, orações budistas e consequentemente em livros que datam do século VIII. Dessa maneira a arte de cortar a madeira ganha toda a Ásia.
Na Europa, a Xilogravura começa a surgir com mais frequência no século XIII e é utilizada para reprodução de imagens sacras, de iluminuras e de cartas de baralho. Em Portugal as impressões originarias das Xilogravuras eram utilizadas nos altares religiosos das casas pobres, uma vez a tela pintada a óleo era bem mais cara de ser adquirida. Já na França temos os registros de um famoso xilogravador que viveu na cidade de Lyon chamado Jean de Dalle que, em sua atividade que remonta entre 1485 e 1515, se utilizava da Xilogravura para fabricar as imagens contidas nas Cartas de Baralho. Simultaneamente, surgiram inúmeros artistas em vários países europeus como Albrecht Durer (1471-1528) na Alemanha.
Segundo Antônio Costella, pesquisador da Xilogravura, no Brasil já havia alguma proto-xilogravura existente em nossos indígenas. Estes utilizavam matrizes em madeira para pintar o corpo ou seus artefatos e utensílios. No entanto, é somente em 1808, com a vinda da família real portuguesa, que ela passa a ser utilizada como uma ferramenta de produção da imprensa. Seu uso em massa se deu com a liberação das gráficas, em 1823. Desse modo, começaram a surgir os profissionais necessários para ilustrar livros, jornais e propagandas. Com essa popularização e o baixo custo de produção a Xilogravura se espalha pelo Brasil.
Voltando nosso olhar para onde importa, o Nordeste, pode-se afirmar que a Xilogravura passa ser considerada pelos artistas populares nordestinos por volta dos anos 20 do século XX. Nos primórdios da impressão folhetesca, o livreto dos Poetas de Bancada era impresso somente com o título da história em sua capa e outras breves descrições. Em um segundo momento, com o advento do cinema e a popularização das revistas de circulação nacional, passaram os folhetos a ter em suas capas imagens literalmente transportadas destes meios. Todavia essa produção gráfica tinha um custo relativamente elevado, fazendo com que os poetas, que em sua maioria eram das camadas mais pobre da sociedade, buscassem alguma forma mais barata de gravar imagens nas capas dos seus folhetos. E por que dessa necessidade de gravar essas imagens? Horas, a nossa percepção deste mundo passa pela visão, sendo assim, um folheto com uma imagem em sua capa chama muito mais atenção nas vistas do comprador do que um sem capa. Me parece essa até uma forma de seleção natural folhetesca, sobrevivendo os com imagens enquanto os sem sumiram.
Outro ponto interessante é que estes poetas mais pobres, que não tinham acesso a uma tipografia ou gráfica, passaram a produzir, não somente os versos dos seus folhetos, mas também as imagens das suas capas e a solução encontrada foi justamente a Xilogravura. Quem foi o primeiro? Quem teve a ideia? Em que foi inspirado? Perguntas perdidas nas areias do tempo. Mas há sugestões! Deixo abaixo um trecho do livro Cantadores, Repentistas e Poetas Populares, de José Alves Sobrinho, que corrobora com a minha teoria, apesar das fontes serem baseadas somente em relatos, do valiosíssimo autor e ex-cantador de viola, é de se considerar a informação quando comparamos com outras fontes levantadas:
“Xilogravura em capa de folheto é coisa da década de 20, precisamente em 1929. Veio-me às mãos um folheto de José Camelo de Melo Rezende, o “Pavão Misterioso”, que trazia em sua capa a figura de um pavão pousado em cima de um toco. Não sei esta xilo é a mais antiga, mas tudo indica que sim. Anos depois depois alguém encontrou na cidade de Bayeux, um cidadão cego já em idade avançada, por nome Álvaro Barbosa, que se dizia xilógrafo e em sua mocidade havia tentado cortar em madeira mole (cajá ou imburana) uma xilogravura, por encomenda do poeta José Camelo de Melo Rezende, seu contemporâneo e vizinho em Guarabira. Dizia ainda que havia colocado suas iniciais (A.B.) no pé da figura: um pavão em cima de um toco. Em 1978, Joaquim Batista de Sena (Joaquim Baraúna) em fortaleza, mostrou-me uma xilo semelhante à que havia informado o cidadão de Bayeux. Joaquim Batista não soube dizer-me quem era o autor daquele trabalho, mas que havia comprado ao poeta José Camelo de Melo na ocasião que lhe comprara os direitos autorais de sua obra literária“.
Já lá nos rincões dos Cariris Novos, nos sertões do Ceará, lá para as bandas do Juazeiro do Padre Cícero Romão, em 1936, o alagoano José Bernado da Silva monta, se não a primeira, umas das primeiras tipografias do sertão estado chamada Tipografia São Francisco. Entre orações, novenas e benditos solicitados pela forte religiosidade popular dedicada ao Santo do Juazeiro, a tipografia imprimia milhares de folhetos que eram distribuídos por todo Brasil através de caixeiros-viajantes.
Pelo que pude coletar, a Tipografia São Francisco, como todas as outras do seu período, já se utilizava da zincografia, que é a técnica, irmã da xilografia, que consiste em riscar uma imagem, fazer um desenho, como matriz, em uma placa de zinco. Segundo o depoimento do Mestre Walderêdo registrado, pelo professor Gilmar de Carvalho, no livro Memórias da Xilogravura, o artista cearense foi um dos expoentes na arte de gravar em madeira. Abaixo um trecho da entrevista:
Entrevista com Walderêdo Gonçalves de Oliveira, no dia 3 de dezembro de 1989, realizada no Restaurante Guanabara (O Neném), em Crato-CE.
Como foi que o senhor começou a fazer xilogravuras? O que o levou a fazer xilogravuras?
Foi aqui no Crato, quando eu trabalhava como gráfico na tipografia de Pergentino Maia (foi titular da Tipografia Cariri, onde Walderêdo se iniciou nas artes gráficas e na xilogravura. A gráfica ainda funciona, com outros donos, no Crato). Seu Zé Bernardo (José Bernardo da Silva, editor de folhetos natural de Palmeira dos Índios-AL. 1901-1972), que vendia folhetos e orações pela feira, mandou imprimir uma oração do Coração de Jesus e precisava de uma xilogravura pra ilustração, e na gráfica não tinha em zincografia. Então eu voltei pra casa pro almoço, preparei um pedacinho de madeira e fiz a primeira xilogravura. Aí foi que surgiu. Eu sempre trabalhava numa coisa e noutra e sempre misturava as profissões: gráfica, carpintaria, eletricidade, xilogravura, carimbo de borracha, tudo eu fazia…
Viu alguém fazendo, deu vontade de fazer? Como é que foi esse começo?
Eu nunca vi ninguém fazendo xilogravura. Eu trabalhava como tipógrafo e conhecia a zincografia. Eu era muito novo nesse tempo, eu tinha 17 anos de idade. Eu via a zincografia e achei que em madeira também dava. Aí tentei e deu certo. A primeira que eu fiz foi numa chapazinha, numa placazinha de maçaranduba, uma madeira muito ríspida, mas muito polidinha.
Walderêdo não era Poeta de Bancada. Ele se afirmou nas artes como xilogravador, sendo convidado por inúmeros poetas para elaborar figuras para as capas dos seus folhetos. No entanto, como podemos constatar na história de J. Borges, afamado xilogravador pernambucano, a xilogravura foi um caminho natural para os poetas que não tinha como pagar um xilogravador. Passando assim, os próprios poetas a gravar as imagens para as capas de seus folhetos, e como veremos mais a frente, a fazer muito mais.
Como nada é definitivo no campo de estudo da História, é preciso salientar, que mesmo com parcos registros de xilogravadores oriundos da Paraíba neste período, primeira metade do século XX, alguns anos antes da Tipografia São Francisco existia na capital da Paraíba a Editora Popular de propriedade, do também poeta, Francisco da Chagas Batista. E mais alguns anos antes desta preciosidade se instalar na capital do estado, Francisco já havia fundado em 1909, com o mesmo nome, uma tipografia na cidade de Guarabira, no brejo paraibano. Desta pioneira seguiram-se inúmeras outras na cidade: Tipografia e Livraria Lima, Tipografia N.S. da Luz, Tipografia A voz do Brejo, Tipografia Moderna e Tipografia Santos, e, posteriormente, tipografia São Joaquim de Joaquim Baptista de Sena em 1939 e a Tipografia Santos de Manoel Camilo dos Santos em 1942. Cabe a pergunta: Quem pode afirmar ou não se os poetas que alimentavam o acervo de todas estas editoras paraibanas também não produziam intuitivamente as imagens de capas dos seus folhetos?
O que se sabe com certeza é que depois da década de 50 começou a pipocar vários xilogravadores, poetas ou não, em todo o Nordeste. Neste período da história, seguindo o grande exemplo do pai do folheto nordestino, o paraibano Leandro Gomes de Barros, muitas vezes, os poetas eram a linha de produção completa: Escreviam os versos e desenhavam a arte de capa, imprimiam o folheto, cortavam as folhas e vendiam na base do canto encenado as maravilhosas histórias que compunham. Eram, sem sombra de dúvida, verdadeiros artistas renascentistas, quando se busca a referência de um artista que produz mais de um espectro da arte. Abaixo listo os xilogravadores que consegui encontrar em minhas pesquisas e que fizeram e fazem parte da história da arte brasileira.
Do Ceará:
João Pereira da Silva, Walderêdo Gonçalves, Manoel Santeiro, Damásio Paulo, Antônio Batista da Silva, Abraão Batista e Antônio Lino da Silva, Stênio Diniz, José Lourenço, João Pedro do Juazeiro, Francorli, Cícero Lourenço, Nilo, Gilberto Pereira, Cícero Vieira, Hamurabi Batista, Josafá de Orós.
Do Pernambuco:
Dila, Marcelo Soares, Gilvan Samico, Nena Borges, Bacaro Borges, Amaro Borges, Jerônimo Soares e J. Borges.
Do Rio Grande do Norte:
Jefferson Campos e Erick Lima
Da Paraíba:
Costa Leite, Marcos Pê, José Altino, Antônio de Araújo Lucena, Leonardo de Farias Leal, Ciro Fernandes.
Do Maranhão:
Airton Marinho Macêdo
Da Bahia:
Minelvino Francisco Silva e Lucélia Borges
Como disse, escolhi a Xilogravura para adornar as poesias do meu primeiro livro, e todo o meu Castelo Literário, o Castelo da Curva do Rio. Mas essa é só uma escolha estética. Eu precisava ainda escolher os temas das gravuras e o tema escolhido foi Pássaros da Fauna Paraibana, uma vez que este primeiro livro representa a Torre da Natureza. Como resido em um pequeno apartamento, com minha esposa e filho, eu não tive condições de fazer a Xilogravura na madeira e por consequência não pude ser fiel por completo a esta expressão artística. Porém, procurei o seu espírito! Desenhei os meus pássaros folhas de papel ofício mantendo os traços e cores características da Xilogravura tradicional, o preto e branco. Confesso que minha maior influência foi o xilogravador pernambucano Gilvan Samico. No meu entender, Samico, faz a ligação perfeita entre o mundo artístico popular (com suas histórias, lendas e heróis), que muitas vezes é intuitivo, com a técnica refinada apurada das academias. O resultado é uma estética que muito me agrada nas suas formas e mensagens.
O mesmo procedimento segui na construção das capas dos meus folhetos e na construção dos símbolos do meu Castelo Literário. Um dia espero que eu tenha espaço e tempo suficiente para conseguir colocar minha arte nas faces da madeira. Espero que eu possa sentir o perfume de umburana. Espero que eu possa trabalhar com as tintas e deixar o meu traço bem mais vivo. Mas por enquanto, faço o que posso com o que tenho.
No meu novo livro de poemas adotei o mesmo estilo do primeiro, todavia o tema escolhido foi o das Carrancas do Rio São Francisco, em especial as carrancas do Mestre Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany. Tentei traduzir para o papel, e consequentemente para o estilo da Xilogravura, aquelas carrancas que tanto me causaram impacto, adornando e protegendo os meus poemas e homenageando esse grande mestre das artes brasileiras.
E as possibilidades são infinitas: O meu próximo livro, que será um livro de contos, terá, em suas páginas, gravuras que manterão este padrão estético. E para este livro muito tenho me inspirado nas xilogravuras de um catarinense chamado Ramon Rodrigues.
Já a revista em quadrinhos que estou elaborando também seguira na trilha da xilogravura mostrando que é possível ser totalmente original bebendo em nossas tradições e misturando-a com uma vasta gama de artistas da arte quadrinesca que tanto usaram o preto e branco em seus trabalhos. Fora esta frutífera associação entre literatura e xilogravuras, há a possibilidade, como tantos xilogravadores fizeram, de talhar na madeira lindas imagens que representam qualquer desejo do artista e que passam a enfeitar qualquer ambiente.
Chego ao final de toda essa conversa sem chegar ao final. Gostaria de deixá-la aberta para que assim, juntos, você, o excelentíssimo leitor, e eu, possamos pensar em outras expressões artísticas da nossa cultura que podem servir de influência para construção de nossos novos universos. Pois ao fazer isso, com respeito e compromisso, valorizamos o que é produzido em nossa terra e tornamos a arte produzida por nós única e verdadeira.
As fontes deste texto foram, além dos livros já citados de Antônio Costella, Gilmar de Carvalho e José Alves Sobrinho, os trabalhos de conclusão de curso da Universidade Federal da Paraíba de Rosangela Vieira Freira (Tipografia São Francisco/Lira Nordestina: Práticas culturais, discursos e memória) e Márcia Ferreira de Carvalho (A Representação da Mulher em Xilogravuras de Autoria Nordestina) disponíveis no repositório da instituição e de diversas fontes da internet como o acervo de literatura de cordel da Casa Rui Barbosa.
Quando a faca encontra a madeira
e o desenho se forma caprichado
neste mundo o olhar fica parado
espantado com a obra verdadeira.
Os desenhos são feitos da maneira
que a beleza lateja pela mão.
Ela guia o prazer do artesão
de moldar uma obra reluzente.
Uma Xilo é como um sol nascente
gera impacto, deleite e comoção!
Pelo mundo a xilo se espalha
conquistando as mentes criadoras.
Estas almas são luzes condutoras
que a imagem da vida nos entalha.
Um deslize, um roubo, uma falha
uma guerra, uma arma, uma nação.
Uma glória, um herói, um coração,
cabem todos no traço permanente.
Uma Xilo é como um sol nascente
gera impacto, deleite e comoção!
Ao chegar no Nordeste brasileiro
esta arte encontra seu lugar.
Nosso solo tão duro e sem par
se fundiu ao corte carpinteiro.
A junção que se deu foi por inteiro
e os dois são agora um só chão.
O Nordeste se orgulha e dá vazão
pruma arte que é da nossa gente.
Uma Xilo é como um sol nascente
gera impacto, deleite e comoção!
Quem quiser o seu mundo desenhar
e mostrar ao mundo sua luz,
siga o facho que forte nos conduz
para mundo repleto de sonhar.
Preto e branco são cores a moldar
este mundo de corte e precisão.
Desse modo, repito a oração,
que consola o artista docemente:
Uma Xilo é como um sol nascente
gera impacto, deleite e comoção!