Eu costumo dizer que a tecnologia prejudicou a magia do momento. Afirmo isso porque minha geração viveu a transição entre o mundo pré-internet e a era digital — e isso faz toda a diferença em um tempo em que as informações circulam em tempo real, muitas vezes antecipando eventos que só acontecerão anos depois.
Hoje, é raro alguém se surpreender com algo na indústria cultural. Os famosos “spoilers” estão por toda parte. Um filme que estreará daqui a dois anos já tem elenco, data de lançamento e até detalhes do roteiro divulgados. Um álbum, antes mesmo de ser lançado, já tem faixas conhecidas, produtores revelados e trechos vazados.
Mas, e antes disso? Qual era o efeito de ouvir a música nova da sua banda favorita no rádio pela primeira vez? Ou entrar numa sala de cinema sem saber absolutamente nada sobre o filme em cartaz? Já parou para pensar no impacto — e no prazer — de descobrir algo novo? O quanto isso mexia com a gente?
Um bom exemplo vem dos quadrinhos. Em 1988, nos Estados Unidos, um dos eventos mais marcantes da cultura pop ocorreu: a morte de um personagem icônico, promovida de forma altamente midiática e com participação direta do público. Isso aconteceu na DC Comics, na saga Uma Morte em Família, publicada às vésperas dos 50 anos do personagem Batman. Nessa trama, Jason Todd — o segundo Robin — é brutalmente assassinado pelo Coringa. A história é, até hoje, lembrada como uma das mais impactantes do universo do Cavaleiro das Trevas.
Duas coisas me chamam atenção nesse episódio:
A primeira é o ineditismo da participação popular. A editora abriu duas linhas telefônicas para que os leitores votassem e decidissem o destino do personagem. Na época, os editores afirmavam que recebiam milhares de cartas dizendo que o público não gostava de Jason Todd. Assim, como nos programas de TV interativos — como Você Decide ou Linha Direta, exibidos na Rede Globo nos anos 90 —, os fãs puderam escolher o rumo da história. A decisão foi clara: a maioria votou pela morte de Jason Todd. E assim aconteceu. Pela primeira vez, uma grande editora de quadrinhos entregou o controle narrativo ao público. O resultado foi uma das histórias mais chocantes e memoráveis do universo do Batman, marcando para sempre a cultura pop.
A segunda coisa que me marcou: aqui no Brasil, a história foi publicada pela primeira vez em novembro de 1989. Ou seja, um ano depois do evento original nos EUA — e eu não fazia ideia do que tinha acontecido, nem do impacto que aquilo teria em mim. Lembro de chegar à banca e me deparar com uma revista de nome tão impactante: A Morte do Robin. Pode até soar um pouco dramático, mas imagine um garoto apaixonado por histórias em quadrinhos vendo aquela capa — o personagem ensanguentado, o título em letras grandes e pesadas. Parecia até uma manchete do finado jornal sensacionalista “Já”, publicado aqui no Estado. E talvez esse fosse exatamente o efeito buscado — e alcançado — pela Editora Abril, que publicava as histórias na época.
O impacto foi imediato. Levei a revista para casa e mergulhei na leitura. Era uma história forte, intensa, diferente de tudo o que eu já tinha lido. Claro que, hoje, muita coisa ali já não faz tanto sentido. Mas, para um garoto lendo sozinho no quarto, no fim da tarde, aquilo era fantástico e profundamente marcante. Um personagem importante da cultura pop, como o Robin, era morto brutalmente por um vilão de quadrinhos — e, para mim, aquilo era muito real dentro do meu universo imaginário.
Hoje em dia, me pego tomado pelo saudosismo, imaginando como seria possível resgatar esse tipo de sentimento quando já sei o que vou ler, assistir ou ouvir nos próximos meses.
E é exatamente esse tipo de experiência — de surpresa, de impacto, de descoberta — que, muitas vezes, a tecnologia e o excesso de informações acabam tirando de nós. Perdemos a magia pelo excesso de informação. Vivemos cercados por “spoilers”. E, com isso, talvez estejamos também nos distanciando do encantamento.
Eu lembro dessa edição, pelas mãos ansiosas e também fã de histórias em quadrinhos na época, meu irmão. Ele ficou no quarto, quase um ritual mesmo. Eu, que também sou da mesma geração que você, fico triste com a falta de encantamento. Na verdade, falta da falta. Não desejamos mais, desejam por nós e nos impõem o que vimos, ouvimos, . Não há surpresa, não há escolha. Amante da literatura, das coisas mais prazerosas é pegar um livro, sentir o cheiro do ineditismo, sem que saber os personagens, o caminho da história, seu final. Sou nostálgica dessa época da espera, da surpresa, do encantamento, do frio na barriga ao chegar um álbum novo da banda favorita. Não saber era mágico, era a possibilidade do encontro com o inesperado.